ALÉM DOS LAUDOS PERICIAIS
(REFLEXÕES PSICANALÍTICAS SOBRE A PSICOLOGIA
NO ÂMBITO JURÍDICO)
A inserção do psicólogo no âmbito
jurídico ainda é um processo em construção. De um lado o cargo ainda precisa
ser criado, por exemplo, nos Tribunais de Justiça de alguns Estados, onde a
figura do assistente social é sempre presente e o psicólogo fica,
aparentemente, em segundo plano. Por outro lado, questões que envolvem aspectos
legais (adoção, separação, guarda etc.) freqüentemente demandam a intervenção
do Psicólogo, seja em instituições públicas ou mesmo nos consultórios particulares.
Dentro deste processo de construção,
já se encontram profissionais da Psicologia envoltos em reflexões sobre suas
práticas e as suas relações com outros profissionais e os juízes.
No que diz respeito a outros
profissionais, já se percebe nitidamente a necessidade do compartilhar
conhecimentos e integrar discursos no que se refere às “coisas” com que lidam
no âmbito jurídico, enquanto que ao
serviço de Psicologia resta cada vez mais freqüente um questionamento das
possibilidades, não apenas de inserção mas também de atuação deste
profissional.
Se formos focar a nossa atuação, o
que tem caracterizado o psicólogo, via de regra, junto ao jurídico? O Psicólogo
é convocado pelo juiz para o exercício de uma perícia, ou seja, uma função claramente técnica que
precisa da aplicação de entrevistas e testes psicológicos, ferramenta “sine qua
non” nesta perspectiva.
Estamos no lugar que Muñoz Sabaté
(1980) apud Trindade (2011, p. 30), ao alertar para o perigo das
classificações, chamou de Psicologia para
o Direito.
...a
psicologia verdadeiramente como ciência auxiliar ao direito, colocada ao lado
da medicina legal, da engenharia legal, da economia, da contabilidade, da
antropologia, da sociologia e da filosofia, dentre outras. É a psicologia
convocada a iluminar os fins do direito.
E como ciência auxiliar, a
maquinaria a disposição do psicólogo jurídico inclui evidentemente, a
utilização dos testes psicológicos como os instrumentos que podem “garantir” a
objetividade necessária ao trabalho
pericial e assim não dar margem para dúvidas ou mesmos críticas daqueles que
irão de alguma forma usufruir da perícia.
O
uso de testes não deve, entretanto, ser contestado por si. Não há dúvida que
são o grande instrumental da intervenção psicológica. O que é atacado pelos próprios juristas ou mesmo
outros profissionais é antes, o que é trabalhado pelo Psicólogo: a
subjetividade. Tal imaterialidade, que por si só pode resultar em várias
possibilidades de interpretação, coloca a Psicologia sempre em posição de ser
questionada. Que validade haveria para uma função de perícia na tomada de
decisão dos juízes? Ao fazermos tal consideração, não ignoramos que a perícia psicológica, se é atacada, também é requisitada como a "grande" atuação do psicólogo no terreno jurídico.
O que interessa aqui é, na verdade,
a posição técnica no sentido do
significado que isto representa quando se percebe que muitos psicólogos têm
estado apenas no fomento do lugar do perito.Assim,correm o risco de se tornarem
meros aplicadores de testes e carimbadores de laudos que ainda pretendem dar
conta total da complexidade dos sujeitos.
Não é o uso de testes em si o objeto
de contestação. Questionamos sim, o risco de aniquilarmos o sujeito e de nos
prendermos apenas em uma função tecnocrata. Refletir o uso e aplicação dos
testes psicológicos significa não apenas pensar o risco da tecnocracia no
espaço do jurídico, mas antes, em qualquer espaço onde a Psicologia esteja
presente.
Se o momento da nossa profissão é o
de rumar a uma revisão de nosso alcance social separando-se de um modelo médico
ortodoxo e atuando de forma a mostrar nossa importância para a sociedade,
parece coerente que façamos um movimento semelhante no que diz respeito ás
atividades junto ao jurídico.
Tal aspecto pode proporcionar a
hipótese de que não possa faltar, de um lado, a consciência política que nos
torne críticos quanto aos fenômenos sócio-econômicos que são relevantes às
dinâmicas individuais ou grupais
(familiares), e de outro lado, a
importância de um olhar e uma escuta clínica, que possa ir além do
fenômeno e abarque, principalmente, uma dinâmica de funcionamento emocional do sujeito que nos
procura.O
que basicamente nos diferencia de outros agentes sociais que trabalham o
humano? É a nossa escuta do “diferente.” Nosso olhar sobre o que não se vê
normalmente.Isto é que deverá nos
credenciar para nossas tomadas de decisões e não apenas o resultado de
aplicação psicométrica e conseqüente elaboração de laudos.
Se pegarmos a questão dos laudos
como instrumentos de poder (que são), precisamos então de maiores cuidados. O
que se têm escrito nestes documentos? O que
nós, psicólogos estamos dizendo? Como é isso de um “saber” fechado sobre
alguém? Não podemos ser levados pela ingenuidade de pensarmos que tais
questionamentos não cabem mais.
A relação de poder oriunda da
atuação psicológica ainda se faz presente no “modus operandi” de alguns
profissionais da área. Relação esta que violenta (para não dizer que mata) a
possibilidade de se escutar o sujeito que atendemos e torna o Psicólogo obtuso
quanto a sua atuação.
Abrir mão de uma posição de poder
para que um sujeito possa advir, eis uma questão que se coloca a nós. O advento
desse sujeito, traz para junto da intervenção no “mundo jus”, a escuta que deve permear a clínica. Em
outras palavras, o psicólogo jurídico deve ser clínico também. E não apenas por
aplicar testes, mas sim, e fundamentalmente, por ter uma escuta da dinâmica do sujeito, de
como este funciona.
Tal perspectiva deve trazer à tona
novas reflexões; por exemplo, que essa escuta clínica não deve ser confundida
com uma psicoterapia, sistematicamente
falando, mas que bem conduzida, propiciará a quem nos procura, um efeito da
ordem do terapêutico.
E quanto às perguntas objetivas que
os juízes demandam aos psicólogos? Não requerem respostas objetivas?
Talvez, a questão maior aqui seja que
precisamos nos lembrar constantemente
que não temos como “fechar” o comportamento de alguém para agradarmos
aqueles que nos inquerem.
Ser a objetividade passar apenas por
um enquadramento do sujeito, nossa posição deverá ser a de não objetividade.
Mas se pensarmos que a objetividade pode passar também pelo uso de linguagem
clara sobre as vicissitudes do movimento psíquico de cada um e propondo sempre
que possível um acompanhamento sistemático de cada caso, estaremos eticamente
conectados às peculiaridades de nossa atuação. Temos condição de sustentar
isto?
Juntamente com uma perspectiva clinica
de escuta da psicodinâmica dos sujeitos e de reconhecimento do contexto social
e histórico em que inserem aqueles que chegam até nós,muitos psicólogos já
estão provando que a atuação no espaço jurídico pode extrapolar supostos
limites.
Uma Psicologia que se pretenda de
alguma forma, subversiva em relação ao que se espera dela, ou seja, um
conhecimento que enquadra o sujeito, é uma Psicologia que se questiona na sua
função social. Mas resta também uma pergunta.
Essa Psicologia subversiva, que não
mata o sujeito e suspende o juízo (psicanaliticamente falando) pode dialogar
com domínio jurídico? Isto exigiria uma
disponibilidade interna não apenas dos psicólogos, mas também daqueles que tem
como tarefa dizer o Direito.
TRINDADE, J. Manual de Psicologia Jurídica para
operadores do Direito. 5ºed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2011.
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