terça-feira, 29 de janeiro de 2013

ALÉM DOS LAUDOS PERICIAIS (REFLEXÕES PSICANALÍTICAS SOBRE A PSICOLOGIA NO ÂMBITO JURÍDICO)


ALÉM DOS LAUDOS PERICIAIS
(REFLEXÕES PSICANALÍTICAS SOBRE A PSICOLOGIA NO ÂMBITO JURÍDICO)
                                              
            A inserção do psicólogo no âmbito jurídico ainda é um processo em construção. De um lado o cargo ainda precisa ser criado, por exemplo, nos Tribunais de Justiça de alguns Estados, onde a figura do assistente social é sempre presente e o psicólogo fica, aparentemente, em segundo plano. Por outro lado, questões que envolvem aspectos legais (adoção, separação, guarda etc.) freqüentemente demandam a intervenção do Psicólogo, seja em instituições públicas ou mesmo nos consultórios particulares.
            Dentro deste processo de construção, já se encontram profissionais da Psicologia envoltos em reflexões sobre suas práticas e as suas relações com outros profissionais e os juízes.
            No que diz respeito a outros profissionais, já se percebe nitidamente a necessidade do compartilhar conhecimentos e integrar discursos no que se refere às “coisas” com que lidam no âmbito  jurídico, enquanto que ao serviço de Psicologia resta cada vez mais freqüente um questionamento das possibilidades, não apenas de inserção mas também de atuação deste profissional.
            Se formos focar a nossa atuação, o que tem caracterizado o psicólogo, via de regra, junto ao jurídico? O Psicólogo é convocado pelo juiz para o exercício de uma perícia,  ou seja, uma função claramente técnica que precisa da aplicação de entrevistas e testes psicológicos, ferramenta “sine qua non” nesta perspectiva.
            Estamos no lugar que Muñoz Sabaté (1980) apud Trindade (2011, p. 30), ao alertar para o perigo das classificações, chamou de Psicologia para o Direito.
...a psicologia verdadeiramente como ciência auxiliar ao direito, colocada ao lado da medicina legal, da engenharia legal, da economia, da contabilidade, da antropologia, da sociologia e da filosofia, dentre outras. É a psicologia convocada a iluminar os fins do direito.

            E como ciência auxiliar, a maquinaria a disposição do psicólogo jurídico inclui evidentemente, a utilização dos testes psicológicos como os instrumentos que podem “garantir” a objetividade  necessária ao trabalho pericial e assim não dar margem para dúvidas ou mesmos críticas daqueles que irão de alguma forma usufruir da perícia.
O uso de testes não deve, entretanto, ser contestado por si. Não há dúvida que são o grande instrumental da intervenção psicológica. O que é  atacado pelos próprios juristas ou mesmo outros profissionais é antes, o que é trabalhado pelo Psicólogo: a subjetividade. Tal imaterialidade, que por si só pode resultar em várias possibilidades de interpretação, coloca a Psicologia sempre em posição de ser questionada. Que validade haveria para uma função de perícia na tomada de decisão dos juízes? Ao fazermos tal consideração, não ignoramos que a perícia psicológica, se é atacada, também é requisitada como a "grande" atuação do psicólogo no terreno jurídico.
            O que interessa aqui é, na verdade, a posição técnica  no sentido do significado que isto representa quando se percebe que muitos psicólogos têm estado apenas no fomento do lugar do perito.Assim,correm o risco de se tornarem meros aplicadores de testes e carimbadores de laudos que ainda pretendem dar conta total da complexidade dos sujeitos.
            Não é o uso de testes em si o objeto de contestação. Questionamos sim, o risco de aniquilarmos o sujeito e de nos prendermos apenas em uma função tecnocrata. Refletir o uso e aplicação dos testes psicológicos significa não apenas pensar o risco da tecnocracia no espaço do jurídico, mas antes, em qualquer espaço onde a Psicologia esteja presente.
            Se o momento da nossa profissão é o de rumar a uma revisão de nosso alcance social separando-se de um modelo médico ortodoxo e atuando de forma a mostrar nossa importância para a sociedade, parece coerente que façamos um movimento semelhante no que diz respeito ás atividades junto ao jurídico.
            Tal aspecto pode proporcionar a hipótese de que não possa faltar, de um lado, a consciência política que nos torne críticos quanto aos fenômenos sócio-econômicos que são relevantes às dinâmicas  individuais ou grupais (familiares), e de outro lado,  a importância  de um olhar e  uma escuta clínica, que possa ir além do fenômeno e abarque, principalmente, uma dinâmica  de funcionamento emocional do sujeito que nos procura.O que basicamente nos diferencia de outros agentes sociais que trabalham o humano? É a nossa escuta do “diferente.” Nosso olhar sobre o que não se vê normalmente.Isto é que deverá  nos credenciar para nossas tomadas de decisões e não apenas o resultado de aplicação psicométrica e conseqüente elaboração de laudos.
            Se pegarmos a questão dos laudos como instrumentos de poder (que são), precisamos então de maiores cuidados. O que se têm escrito nestes documentos? O que  nós, psicólogos estamos dizendo? Como é isso de um “saber” fechado sobre alguém? Não podemos ser levados pela ingenuidade de pensarmos que tais questionamentos não cabem mais.      
            A relação de poder oriunda da atuação psicológica ainda se faz presente no “modus operandi” de alguns profissionais da área. Relação esta que violenta (para não dizer que mata) a possibilidade de se escutar o sujeito que atendemos e torna o Psicólogo obtuso quanto a sua atuação.
            Abrir mão de uma posição de poder para que um sujeito possa advir, eis uma questão que se coloca a nós. O advento desse sujeito, traz para junto da intervenção no “mundo  jus”, a escuta que deve permear a clínica. Em outras palavras, o psicólogo jurídico deve ser clínico também. E não apenas por aplicar testes, mas sim, e fundamentalmente,  por ter uma escuta da dinâmica do sujeito, de como este funciona.
            Tal perspectiva deve trazer à tona novas reflexões; por exemplo, que essa escuta clínica não deve ser confundida com uma psicoterapia,  sistematicamente falando, mas que bem conduzida, propiciará a quem nos procura, um efeito da ordem do terapêutico.
            E quanto às perguntas objetivas que os juízes demandam aos psicólogos? Não requerem respostas objetivas? Talvez,  a questão maior aqui seja que precisamos nos lembrar constantemente   que não temos como “fechar” o comportamento de alguém para agradarmos aqueles que nos inquerem.
            Ser a objetividade passar apenas por um enquadramento do sujeito, nossa posição deverá ser a de não objetividade. Mas se pensarmos que a objetividade pode passar também pelo uso de linguagem clara sobre as vicissitudes do movimento psíquico de cada um e propondo sempre que possível um acompanhamento sistemático de cada caso, estaremos eticamente conectados às peculiaridades de nossa atuação. Temos condição de sustentar isto?
       Juntamente com uma perspectiva clinica de escuta da psicodinâmica dos sujeitos e de reconhecimento do contexto social e histórico em que inserem aqueles que chegam até nós,muitos psicólogos já estão provando que a atuação no espaço jurídico pode extrapolar supostos limites.
            Uma Psicologia que se pretenda de alguma forma, subversiva em relação ao que se espera dela, ou seja, um conhecimento que enquadra o sujeito, é uma Psicologia que se questiona na sua função social. Mas resta também uma pergunta.
            Essa Psicologia subversiva, que não mata o sujeito e suspende o juízo (psicanaliticamente falando) pode dialogar com domínio jurídico? Isto exigiria  uma disponibilidade interna não apenas dos psicólogos, mas também daqueles que tem como tarefa dizer o Direito.
           
TRINDADE, J. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito. 5ºed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2011.