sexta-feira, 27 de dezembro de 2013
SUSTENTAR O LUGAR: UMA FORMA DE FAZER CLÍNICA PSICANALÍTICA NA ATUALIDADE.
SUSTENTAR O LUGAR: UMA FORMA DE FAZER CLÍNICA PSICANALÍTICA NA ATUALIDADE.
Já estou na prática docente em Psicologia há tempo suficiente para ter ouvido inúmeras vezes de alguns alunos que não gostam de psicanálise porque o analista é “frio”, “pouco emotivo” e “pouco empático” e mais...o analista praticamente não fala, só escuta. Tantas décadas de psicanálise e ainda escutamos isto? Sim, porque ainda há uma prática rígida da psicanálise e um entendimento ortodoxo do que é ser um analista. A enfâse na escuta do inconsciente parece ter tirado a compreensão de que o analista também fala e também por ai passa a sustentação deste lugar de analista.
Desde os primeiros momentos em que Freud passa a escrever de forma sistemática sobre a questão da formação psicanalítica nos famosos ‘’Artigos sobre a Técnica “de 1912”, a busca por se alcançar os princípios básicos postulados pelo pai da Psicanálise como necessários para a concretização adequada da intervenção psicanalítica foi se tornando algo como que “intocável”. Assim permaneceu durante bom tempo, provavelmente apenas vindo a sofrer seus primeiros grandes questionamentos a partir de Jacques Lacan em fins dos anos 1950.
O desenvolvimento das Sociedades Psicanalíticas contribuiu efetivamente para a implantação definitiva dos padrões de formação do analista e gradativamente foi sendo adicionada a modelos universitários de formação quando a Psicanálise passou a fazer parte também de currículos acadêmicos. Importante então ressaltar que a inclusão da Psicanálise no meio acadêmico foi se dando também em meio ao surgimento de outras técnicas de psicoterapia que traziam variações importantes tanto técnicas quanto teóricas, inclusive no tocante á formação do terapeuta.
A busca pela consolidação da formação, também acabou por cair em um engessamento da formação, representada principalmente sobre como o analista conduz o tratamento psicanalítico. A importante junção de procedimentos técnicos e éticos acabou por reduzir-se a esteriótipos da figura do analista e seus comportamentos dentro e fora do consultório. Parece-nos assim, que muito deste esteriótipo está relacionado a figura do analista como um profissional que quase nada fala no trabalho analítico, que somente escuta e desvia efetivamente qualquer pergunta que lhe seja dirigida pelo analisando como manifestação de resistência deste.Tal esteriótipo pode ser facilmente encontrado em muitos psicoterapeutas que defendem a posição por estarem dando seqüência ao que foi devidamente postulado por Freud. Logo, o analista “mudo”, onde a resistência é basicamente do analisando, torna-se o padrão seguido rigidamente. Não estamos diante de um equívoco? Nazio (1999,p.07) aponta; “A caricatura do analista eternamente silencioso, sugerindo que a análise se desenrola ao sabor da fala, é uma visão incorreta. É uma caricatura errônea do nosso trabalho de analista e lhe é nociva.”
É com Juan David Nazio na obra “Como trabalha um psicanalista” de 1999, que encontramos uma construção adequada do que é o silencio do analista. O analista só está verdadeiramente disponível para a escuta, isto é, o analista só consegue verdadeiramente transformar os derivados inconscientes do seu paciente em uma interpretação ou em uma percepção alucinada com a condição de deixar, abandonar, separar-se do seu Eu, de fazer calar em si as ambigüidades, os enganos e erros do discurso intermediário, para abrir-se enfim á cadeia das palavras verdadeiras (...) É preciso pois, abandonar o EU.(NASIO, 1999,p.126)
E o que significa então este abandonar o EU? Nasio completa a questão; Fazer silêncio em si significa que espacialmente estamos fora de nós, exilados do Eu, ou, para retomar o belo título de um livro recente escrito por uma amiga, somos estranhos a nós mesmos. Somos estranhos a nós mesmos sem com isso estarmos com o outro, meu semelhante, isto é, meu analisando, nem com o Outro nem com o grande Outro, garantia da verdade. Não estamos nem sós nem com os outros. Estamos sem mais ninguém. E por estarmos sem mais ninguém, somos objetos. Sou onde não há EU. Sou onde não penso. Sou onde não há outro, nem pequeno nem grande Outro. Isso espacialmente. Temporalmente, não temos nenhuma consciência da duração. O lugar do analista, o fazer silêncio-em-si, só o ocupamos na brevidade fulgurante de um clarão. (NASIO, 1999,p.126-127)
Aqui podemos pensar o que marca a relação analítica. Para produzir transferência o analista não deve existir plenamente, deve abandonar-se e permitir que o desejo inconsciente do analisando venha á tona. Não falando de “suas coisas” o analista possibilita que as “coisas” do analisando aconteçam na sessão. O analista deve funcionar como um espelho, como escreveu Freud nas “Recomendações aos que exercem a Psicanálise” (1912)
Segurar esta posição é a essência mesma da analise. Segurar a relação transferencial após produzi-la. Não estamos diante de uma das principais diferenças da clinica psicanalítica em relação ás outras formas de psicoterapia? Lembremos do quanto a transferência é fundamental para a Psicanálise.
Sustentando o Lugar na relação analítica.
É no exercício cotidiano da clínica psicanalítica que somos chamados ao desafio de poder manter o lugar do analista. É na relação analítica com o paciente que vivenciamos a experiência do inconsciente do outro. Minha clinica é um espaço onde busco manter a escuta do inconsciente dos pacientes ( O Édipo, a forma de lidar com a castração, a sexualidade infantil) e onde entendo que se constrói o Silêncio-em-si que Nazio nos propõe. Em outras palavras, o que cala em mim não é a voz, apesar de que, como é de se esperar em uma abordagem psicanalítica, eu provavelmente fale bem menos do que psicoterapeutas de técnicas não psicanalíticas.
Vejamos uns fragmentos de análise em que pude trabalhar.
V.40 anos, foi minha paciente por 1 ano. Possui um histórico de relacionamentos amorosos fracassados que foram abortados como ela dizia, por ela própria, antes que ficasse mais sério e eu sofresse mais, ela relatava. Após o terceiro rompimento começa uma psicoterapia não analítica que dura seis meses e que é também abortada por V. Me procura após a quinta separação.
Um fragmento de sessão quando contávamos já sete meses de trabalho, ilustra bem o desafio para mim de sustentação do lugar de analista.
- Hoje não quero falar de mim. Diz V. Vamos falar de você. Estou vindo aqui já há um tempão e você ainda não falou nada sobre você mesmo.
Esta fala é muito comum na clinica. Costuma incomodar os iniciantes e ás vezes até quem já tem um bom tempo de consultório. Também pude perceber meu próprio incômodo, entretanto procurei não lidar com ela como se estivesse fugindo, usando falas como Estamos aqui pra falar de você muito menos dei a V. o que ela queria, ou seja, não falei de mim. Pelo menos não como a paciente pode achar que queria.
Neste ponto inicio em silencio até que V. insiste;
- Me fale de você. Quantos anos tem?
- 36, respondo.
- Já percebi que você é casado. Tem filhos?
- Sim
Seguem mais duas perguntas semelhantes , onde respondo de forma calma e monossilábica até que V. fica em silencio.
Aqui penso importante esclarecer. Respondo as perguntas de V. sem responder. Imaginariamente, ela pode fantasiar que entraria em uma conversa habitual comigo, que eu ampliaria minhas respostas a detalhes de mim enquanto pessoa. Seu silêncio após as perguntas é prova de sua frustração e ao mesmo tempo de seu entendimento do que estava tentando fazer. Assim que não preciso necessariamente recorrer ao clássico chavão típico de muitos psicoterapeuta que dizem; É importante pra você?
Então intervenho: Parece que você ficou incomodada.
- É. De repente não sei o que fazer...
- Neste momento é tão difícil falar de suas coisas que você só conseguiu querer falar de mim. Digo a V.
- É que o outro psicólogo que tive falava mais. Falava o que eu tinha de fazer. Voce não diz o que eu tenho de fazer.
- Eu não acho que você queira que eu diga o que você deve fazer.
- Depois de uns minutos de silencio, V. fala: O outro psicólogo falava...
- Então você deixou de ir. Disse-lhe.
V. a partir daí, começou a associar como se sentia com o outro psicólogo e como se sentia comigo. Percebe sua tentativa de sabotar a sessão e faz novas pontes entre o que sente na sessão e seus sentimentos quanto aos homens com quem se relacionou.
Penso importante salientar que senti incômodo com as falas de V. Parece que sempre esperamos que o paciente faça “tudo como tem que ser feito”, que associe sem maiores transgressões ao setting e que seja assim, “um bom paciente”. Evidentemente a vivência da clinica, aliada ao nosso trabalho de análise pessoal nos possibilita cada vez maior equilíbrio diante de sentimentos como este, nos dando condições de manter nosso lugar na relação analítica e dar seguimento ao processo de análise dos pacientes.
Remeto-me a Lacan, que enfatizou; “Nunca se disse que o analista não deve ter sentimentos em relação ao seu paciente. Mas deve saber não apenas não ceder a eles, colocá-los no seu devido lugar, mas servir-se deles adequadamente na sua técnica.” (LACAN, 1979, p. 43)
Acredito que não precisamos fugir das perguntas que nossos pacientes nos fazem e sim que podemos responder desde que não coloquemos nossos desejos enquanto pessoas na cena analítica. Sendo mais pontual: Desde que não coloquemos nosso ego em cena.
Outro fragmento ilustrativo é o de M.32 anos, homem com timidez patológica e que foi meu paciente durante um ano e meio e que eu havia encontrado na padaria um dia antes da sessão relatada. No momento do encontro eu o cumprimentei educadamente como sempre faço quando encontro um paciente em situações fora da sessão. No dia da sessão ele fala;
- Você sempre vai aquela padaria?
- Ás vezes, digo.
- Eu já te vi por lá outras vezes. Você deve morar perto de lá não é?
- Sim, respondo já na expectativa de para onde M iria com sua fala.
- Dia desses te vi de bermuda e sandália. Estranho ver meu psicólogo como uma pessoa normal. (Fala expressando o rubor característico de sua excessiva timidez.)
Neste ponto eu já havia percebido como eu estava incomodado diante da fala de M e permaneci em silêncio, esperando para ver como ele desenvolveria seu discurso. Curiosamente naquela sessão, ele trabalhou normalmente e não escutei nada mais que pudesse apontar uma resistência do paciente, nem minha. A questão voltou a se apresentar oito sessões depois. Nas anteriores já havia percebido uma mudança no ritmo do discurso de M. Seu estilo de falar vinha se mostrando mais cadenciado, quase deprimido. Já não trazia muitos conteúdos como antes, mesmo assim nada lhe apontei pois não conseguia “hipotetizar” uma compreensão de sua atual dinâmica.
Lembrei-me entao que eu o tinha visto em dois eventos sociais nas duas semanas seguintes ao nosso “encontro” na padaria. Nas duas ocasiões ele veio até mim e me cumprimentou, mas não havia trazido nada sobre isto nas sessões. Passei a ligar que o ritmo das sessões começou a mudar dias depois deste episódio que eu inicialmente ignorei, pois ele nada havia falado. Então, na nona sessão após a citada inicialmente, M.fala das duas outras situações em que me cumprimentou;
- Me senti estranho nas duas ocasiões em que lhe vi a noite. Diz M.
Permaneci em silêncio. Então ele continuou mostrando-se agitado;
- Achei que você podia ter me dado maior atenção. Achei que você meio que me ignorou, foi monossilábico. Não gostei.
Naquele momento minha mente já começava a ser contaminada com um previsível incômodo e a tendência era ou permanecer em silêncio ou solicitar que ele falasse mais sobre seus sentimentos, mas percebi que esta última alternativa era minha defesa naquele momento. Após um tempo em que ambos ficamos em um silencio que não sei hoje precisar, interpretei-lhe fazendo uma ligação com sentimentos homo-eróticos que ele havia verbalizado ainda nas primeiras sessões e que sua hostilidade latente acabou por mudar a forma como vinha conduzindo suas associações e conseqüentemente me punindo. As questões homo-eróticas que foram trazidas no começo só ganharam sentido pra mim a partir daquele instante. Antes, além de não aparecerem muito nas associações de M, também eu não me “lembrava” delas porque me trouxeram sentimentos de rejeição quando ele as verbalizou inicialmente. Foi preciso que eu as mantivesse equilibradas em mim para que o incômodo que as associações do paciente me suscitaram não afetasse a relação analítica e minha escuta do seu inconsciente. Trabalhamos por mais 1 ano até que M, mudou-se de Porto Velho.
Considerações finais.
O exemplo destes pacientes tem por simples objetivo compartilhar as variações intersubjetivas que a psicoterapia psicanalítica pode nos oferecer. A intenção básica é que reflitamos sobre a importância de que uma apurada escuta do inconsciente na clínica psicanalítica é antes de tudo, uma escuta do singular e um singular que inclui o próprio analista e não apenas o paciente. Assim, não se prender a compreensões engessadas, onde práticas discursivas (muitas vezes acadêmicas) impõem “modelos” de postura do analista que não necessariamente retratam o que é analisar no século XXI parece ser um dos grandes desafios para a Psicanálise nos dias atuais.
Pensar que o Lugar de sustentação do que é ser analista passa alhures de qualquer caricatura hollywoodiana ou novelescas é avançar na perpetuação de uma prática de questionamento do humano que há mais de um século nos ensina que não somos senhores em nossa própria casa. É isto que gosto de dizer aos meus alunos.
Referências Bibliográficas.
Freud, S. (1912/1969). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. Artigos sobre a técnica. In: Obras Psicológicas Completas. Vol. 12. Imago. Rio de Janeiro.
Lacan, J. (1979). O Seminário 2: O eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica. Jorge Zahar. Rio de Janeiro.
Nasio, J.D. (1999). Como trabalha um psicanalista? Jorge Zahar. Rio de Janeiro.
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