A QUESTÃO DA “VERDADE” EM PSICANÁLISE E
EM PSICOLOGIA JURÍDICA.
Zeno Germano
Uma
pergunta comum entre estudantes de graduação em Psicologia é: “Como eu sei se o
paciente está falando a verdade?”. Sem dúvida é uma pergunta no mínimo
interessante e que nos fornece a possibilidade de fazermos vários apontamentos.
Quero
aproveitar e delimitar uma tentativa de resposta a tal pergunta acima
restringindo-me aos campos específicos da clínica psicanalítica e da Psicologia
Jurídica em seu aspecto mais clássico: O da perícia. Já adianto que a “verdade”
tem sentido completamente distinto para o psicólogo jurídico do sentido que se
compreende em um processo de psicoterapia psicanalítica.
Voltemos
à fonte.
Quando
Freud abandona a sua teoria da sedução e a altera pela teoria da fantasia, já é
sabido que constrói uma compreensão diversa do que se tinha até então sobre
realidade. A teoria da sedução fornecia a convicção incômoda de que as
histéricas sofriam algo da esfera do abuso sexual, quando relatavam seus
conteúdos em que a figura do pai aparecia como uma espécie de “pedófilo”, ávido
por, de alguma forma, seduzir seus filhos.
Para
Freud, que tecia sua teoria do inconsciente também a partir de sua própria
análise ( auto-análise), podemos imaginar a angústia que lhe acometeu pensar seu
pai como um abusador, ou mesmo a angústia de vários pacientes ao pensarem seus
pais desta maneira.
Bom,
já sabemos que o desenrolar dos eventos levou Freud a perceber que aquilo
verbalizado não necessariamente correspondia a um fato. Entretanto, tinha todo
o valor real para os pacientes. Pronto, estava fundada a “realidade psíquica”!.
O
que passa a interessar ao psicanalista é a “verdade” do sujeito desejante, sua
realidade psíquica, interna. Como tal fenômeno passou a ser significado e a
intensidade da dor psíquica que é fruto
desta representação e não necessariamente de um fato.
Na
clínica psicanalítica ( pelo menos com neuróticos) só pode haver uma realidade
interna ao sujeito, pois o psicanalista não tem como prática ir verificar, por
exemplo, se a esposa de um paciente que reclama de distanciamento afetivo por
parte dela, “realmente” perdeu o interesse no marido.
Lembro-me
de uma paciente adulta que queria que eu chamasse sua mãe para lhe dizer que
era preciso que ela (a mãe) mudasse de conduta em relação á filha (paciente),
pois a paciente verbalizava que a mãe era rígida e intrusa na vida íntima da
paciente. Era como se eu tivesse que atestar que sua mãe era tal qual a
paciente verbalizava.
Na
clínica psicanalítica, de neuróticos volto a dizer, só existe a verdade que o
sujeito diz. E é isso que é interpretado. Não fazemos visitas domiciliares
nestes casos. Não tiramos a prova dos nove. Não estamos preocupados com os
fatos, pois o fato só é enquanto psíquico.
Este
aspecto tem também lados mais complexos. Por exemplo: Uma paciente verbaliza
que sofreu abuso sexual do padrasto quando era adolescente. Na época ninguém
soube de nada, diz ela, e o padrasto jamais respondeu por isto. O que fazemos
em termos de relação analítica?
Primeiro
é importante atentarmos para um relato que se remete a anos passados. Depois
precisamos escutar como esta paciente representa o que relata. É comum que
terapeutas já se antecipem a paciente e nomeiem ai uma relação de causa efeito
quanto ás sintomatologias apresentadas.
Na
Psicanálise tenderemos a ser mais cuidadosos. Não podemos tambem descartar que
há a chance de não haver registro traumático algum. E mesmo que haja a presença
de um trauma, como ter plena convicção de que é fruto de um fato?
Mas
porque insisto em delimitar que se trata da clínica de neuróticos?
Porque
se for o caso de pacientes de dinâmicas como: psicóticos, dependentes químicos,
depressivos, psicossomáticos, borderlines, enfim...em uma dinâmica não
neurótica como predominante de sua personalidade, ou ainda, crianças e alguns
casos de adolescentes, a clínica muda de figura. A clínica psicanalítica muda de figura.
Escutar
o funcionamento psíquico de cada sujeito na clínica é condição essencial. É
esse o diagnóstico em Psicanálise. Nem todo mundo é neurótico e por isso mesmo
nem todo mundo poderá ser analisado com interpretações edípicas. Precisamos
atentar para isto.
Pacientes
com dinâmica de funcionamento predominantemente não- neurótica exigem do analista que não se
contente com a “verdade” do paciente como única questão a ser trabalhada.
Digamos que é preciso, nestes casos, levar em consideração a realidade externa
( o ambiente proposto por Winnicott) o que significa dizer que deveremos
considerar falar com familiares sobre alguns aspectos que envolvam o paciente
como por exemplo: medicações, internações, questões sociais ou de higiene.
Os
chamados casos difíceis, limítrofes e as situações de atendimento de crianças e
adolescentes exigem do psicólogo uma condução do trabalho psicoterápico bem
diferente do que quando este atua com personalidades neuróticas. Então, a
“verdade” está mais além da realidade interna do sujeito atendido.
No
caso de crianças e adolescentes é necessário que entrevistemos os pais e principalemente no caso das crianças,
visitemos a escola, no mínimo. Tais procedimentos são essenciais para
compreender melhor o ambiente da criança ou adolescente e serão fundamentais
para posteriores orientações aos envolvidos com os pacientes.
Em
Psicologia Jurídica, em que estaremos na posição de levantamentos de dados
psicológicos para subsidiar uma decisão judicial, nos encontraremos mais
próximos destas situações de atendimento psicoterápico de casos limítrofes e
crianças e mais afastados da condução com pacientes neuróticos, mesmo que nossa
avaliação ao jurídico se dê com um sujeito adulto neurótico.
O
psicólogo jurídico, quase sempre ás voltas com a elaboração de documentos
técnicos a serem enviados ao Judiciário e Ministério Público, está em uma
posição em que a realidade externa tem tanta força, enquanto espaço de análise,
quanto a realidade interna dos sujeitos.
Este
é o cenário dos psicólogos que atuam com fenômenos em que fatores sociais e
psicológicos são determinações conjuntas nas características das situações
atendidas, muitas vezes inclusive, os fatores sociais estando em maior
evidência ainda do que questões de ordem psicológica.
O
que quero dizer é que situações de violências, drogas, desamparo, miséria,
vitimização, institucionalizações, etc; deixam logo claro que há fortes fatores
sociais em jogo e que se estes não forem alterados, pouca intervenção
psicológica será possivel. Podemos provavelmente inferir que este é um dos
obstáculos que levam muitos psicólogos a analisarem apenas estes fatores
sociais, não conseguindo uma leitura dos aspectos psicológicos subjecentes.
Assim
, a tal da verdade se transforma em algo muito proximo do fato, não bastando
muitas vezes aquilo que o sujeito nos relata e nos impondo como uma urgência
técnica, entrevistarmos por exemplo, a família. É ponto praticamente pacífico
que o trabalho junto aos familiares amplia a compreensão da realidade externa
dos sujeitos e fornece outros elementos inclusive para correlacionar com a
própria dinâmica interna do avaliado.
Isto
nos remete a outra questão importante na diferenciação técnica entre
Psicoterapia e Psicologia Jurídica; O sigilo. Se na psicoterapia, o sigilo está
quase totalmente preservado (salvo situações específicas que coloquem em risco
o paciente ou terceiros que abrem a possibilidade de não haver sigilo e mesmo
assim tendo o psicólogo que julgar se assim procede ou não), na Psicologia
Jurídica, o sigilo é bem menos intocável.
Como
se trata de objetivos diferentes daqueles da psicoterapia e envolve um processo
judicial, muito do relato do sujeito avaliado terá que ser informado, inclusive
o psicólogo devendo dizer isto a pessoa atendida, ou seja, que não poderá
deixar de colocar em Juízo aquilo que considerar relevante para subsidiar a
decisão final do magistrado.
Em
suma, precisamos entender que vamos lidar de forma diferente com as verdades de
cada sujeito. Se estivermos na psicoterapia a verdade é a realidade interna
(salvo os casos já mencionados), se estivermos na Instituição, a verdade
dependerá basicamente dos fatos oriundos da realidade externa. Em ambos os
casos, não poderemos deixar de fazer aquilo ao qual estamos “condenados”
enquanto psicólogos: Escutar.